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softscars

• Ninja Tune

• 2023

9.2

softscars é o entre-lugar que prova o experimentalismo eletrônico da carcaça ciborgue de yeule e adere a relevos humanos de vertentes do rock.

softscars

• Ninja Tune

• 2023

9.2

softscars é o entre-lugar que prova o experimentalismo eletrônico da carcaça ciborgue de yeule e adere a relevos humanos de vertentes do rock.

PUBLICADO EM: 25/09/2023

PUBLICADO EM: 25/09/2023

Quando se lançou oficialmente com Serotonin II, Nat Ćmiel, de nome artístico yeule, intencionava a construção de um material com referências ao mundo dos videogames. Assim, o disco percorre as entrelinhas do som ambiente, enquanto a lírica trabalha um lugar de incerteza. O sucessor, Glitch Princess, é tão robusto na temática cibernética que se dota das inconsistências, dos ruídos sem tratamento e da falta de polimento para produzir um espaço que transita entre o real e o irreal através das suas emoções e falhas sintéticas. Se a progressão entre os álbuns permitiu notar a evolução dessa premissa tecnológica, softscars é o entre-lugar que prova o experimentalismo eletrônico da carcaça ciborgue de yeule e adere a relevos humanos de vertentes do rock.

Como antecipado em análise da canção “dazies”, a produção ainda contempla a vanguarda experimentalista, mas agora ela vai ao encontro de perspectivas do rock de maneira mais declarada que os antecessores, como shoegaze e dream pop. A guitarra distorcida e abafada cria a atmosfera densa que trabalha um lugar de potente transfiguração, perpetuando o renascimento de uma nova forma mutável. O amontoado de singles, “sulky baby”, “dazies” e “ghosts” firmaram esse espaço em que se demonstra um domínio dos instrumentos de corda. Enquanto, por outro lado, “inferno” e a faixa-título “softscars” relembram a possibilidade de o som ainda brincar com construções eletrônicas. Assim, os elementos inéditos se condensam ao glitch pop eletrizante, permitindo a estruturação renovada a partir de bases já características. 

Enquanto experimentamos um mundo que se defronta com o avanço desenfreado da inteligência artificial e elementos androidianos que testam o humano, yeule se identifica com o mundo cibernético como fuga da realidade pelos problemas com seu corpo, envolvendo distúrbio alimentar e disforia de gênero. Só que ao passo que se revestir dessa carcaça parece tentador para criar seu próprio universo, as emoções nunca deixaram de ser um contraponto humanizado da figura futurística. Assim, softscars talvez seja mais claro nessa premissa. O som investido em Glitch Princess aparece singelo nesse novo disco, mas ainda estamos em uma atmosfera repleta de texturas difusas e nuances intrigantes, como a proporção estratosférica investida logo na abertura com a faixa “x w x”, uma mistura de noise com hardcore que prenuncia o evento catártico. Falhas sonoras e piano, prosseguidos por gritos convulsionais, indicam a jornada por uma mente inquietante e desiludida com a própria realidade, mas inteligente o suficiente para tratar a musicalidade em todos os seus milissegundos como expressão de sua batalha existencialista.

Composições melancólicas e depressivas sempre fizeram parte da artisticidade de Ćmiel. Em softscars, além da guitarra, que confere um novo ambiente, a lírica se dota dessa organicidade para trilhar um caminho expondo as feridas com disposição. A primeira música lançada como single, a soturna “sulky baby”, apresentou uma extensão diferente do eletrônico convencional do álbum antecessor. Apesar de a voz ainda ser trabalhada com leves distorções, a produção aparece limpa, acompanhada da letra confessional que explora uma conversa com sua versão mais nova, a confrontando. yeule contou em recente entrevista que seu som sofreu influências do emo, do pós-punk e do rock alternativo que constantemente escutava quando jovem, creditando como referências Avril Lavigne e Smashing Pumpkins. Aqui, confere-se os reflexos dessa direção, perspectiva que havia sido rapidamente apresentada em “Don’t Be So Hard on Your Own Beauty”, do disco passado.

Por outro lado, além de expor o emocional e o psicológico devastado como processo de recuperação, há espaço para desbravar o amor através de algumas faixas, como “ghosts”, “inferno” e “softscars” — esta última ganha adereços característicos que a localiza entre o noise e o glitch. Nos discos passados, havia momentos envolvendo relacionamentos amorosos, só que de modo muito abstrato. Em softscars eles soam diretos, não sendo necessariamente relações românticas, pelo contrário, possuem contornos problemáticos também. Seria, portanto, outra faceta que o álbum permite expressar ao se dotar de uma vulnerabilidade intensa. A música “inferno”, uma entrega pop adornada por sintetizadores que remetem a Serotonin II — assim como “bloodbunny” —, é galopante nessa rumada, compreendendo sacrifícios e disposição pessoal: “I would still walk / Barefoot on the glass, oh / I would still bleed out / Just for you, oh-oh / I would still love you / Ten thousand years from now”. 

Assim, entre momentos contidos, como os vocais angelicais de “4ui12”, “bloodbunny” e a balada transformativa “aphex twin flame” e outros agitados, como “dazies”, contraponto que ganha um cantar asfixiado perseguido pela guitarra excessivamente distorcida e gritos abafados, o material progride a partir da união de atmosferas díspares, condensando o sintético eletrônico ao orgânico das cordas. Essa música é reflexo das inúmeras camadas que yeule investe em seu som, de início tudo é muito conturbado, denso e carregado, gerando dificuldade de identificação das notas e acordes. Mas nada é composto sem propósito. Toda a estruturação taciturna, como se fosse um opressivo sereno que acompanha a melancolia, é uma reverberação do arcabouço lírico. Assim, ao mesmo instante em que se distancia da figura ciborgue, a pretensa humanidade permite a abertura de sentimentos arrebatadores, como se sal fosse jogado na ferida. Contrariamente à textura tempestuosa que acompanha parte majoritária da canção, sua saída é limpa e solar, lançando para o interlúdio de piano “fish in the pool”, que ganha alguns vocais dispersos. A faixa pertence originalmente a Shunji Iwai, que a produziu para a trilha sonora do filme japonês “Hana e Alice”, de 2004, dirigido também por ele.

Portanto, yeule sente a necessidade de escancarar o humano por entrar em um devaneio cibernético: “Agora eu quero me sentir humano. Eu quero sentir que tenho uma direção. Quero sentir que eu sou real.”, contou em recente entrevista à Pitchfork. Em vários momentos do disco isso também fica visível, como na letra de “4ui12”: “Dehumanising me / Romanticising me / Art, artificially / I wish I was special”. O desejo de se sentir especial aparece também em “x w x” e “aphex twin flame”. Mesmo que pretensamente humanizada, as referências digitais ainda são seu forte, somente títulos de músicas como “software update” e “cyber meat” já sustentam a ideia da concepção continuar porque parece difícil se distanciar de algo criado para desenhar no ciberespaço sua vivência no penoso mundo real. A última, destaque-se por executar uma contagiante união eletrônica e rock, com vocais endereçando interpretações emo e a produção revisitando o punk com sabedoria. Já “software update” é uma das canções mais confessionais, uma balada singela acompanhada por vocais serenos sem tanta intrusão robótica discorrendo sobre o processo de ver no espaço virtual uma fuga da realidade, ao passo que toda essa construção parece requerer um fim: 

“Strip for the camera? No
Should I be thinner? No
I would kill anyone
Who made you lose that weight
Twenty-five, traumatized
Painting white on my eyes
Handcuffs and hospitals
Are some things I despise
Replace you with a gram
Call me a sicko or psycho
A.I. or friend”

Reflexos da vida cronicamente online, a personalidade enigmática por trás da música tem muito mais a dizer sobre o presente do que o futuro, embora seu som se comporte como um diagnóstico distópico. A cada dia, a fronteira entre a realidade e o ciberespaço fica mais fina. Estamos experimentando uma condensação de situações que nem mesmo Black Mirror consegue ser tão amedrontadora, apesar de que, a série sempre foi sobre comportamento humano a partir de alegorias extravagantes do que uma previsão do futuro. Ćmiel também executa esse movimento. Sua personagem contempla uma figuração que extrapola a tentativa de fazer seu som ser além do presente, envolvendo outras partes também. Toda a concepção estética e visual agarra a mesma ideia: imagens e videoclipes repletos de efeitos com aspectos artificiais, filtros carregados que tornam a pele plastificada, maquiagem que desenha o rosto milimetricamente pensado e uma comunicação à base de códigos binários, como os primeiros vídeos de divulgação de “sulky baby”. Algo que Grimes também executaria, mas atualmente está perdida e desleixada na própria criação, inclusive, ela é uma das inspirações de yeule. 

A virada para o século XXI tem proporcionado intensas transformações sociais e culturais. Podemos perceber nossas relações sofrendo impactos abruptos graças a intrusão tecnológica e informacional no cotidiano. Tudo tem sido rápido, mutável e líquido, uma convulsão caleidoscópica de acontecimentos que não permite recuperar o fôlego do sufocamento da maré digital. Enquanto experimentamos um avançar incerto, mas que bem se é possível prever, será regido por sucessivas revoluções industriais, que a essa altura já perdemos sua enumeração, o passado parece distante do presente. Nossas expectativas tentam se embasar nas experiências de eventos antecessores, mas a aceleração do tempo torna o exercício fragmentado porque é difícil se identificar com o que já aconteceu. Claro que, estar inserido num contexto onde se percebe tal processo acelerativo, parece mais amedrontador do que realmente é, mas mesmo complexamente célere, constantemente acionamos o passado no presente. yeule domina esse exercício também. Assim, o projeto da mente de Nat Ćmiel transita pela decrépita sociedade moderna a partir de construções futuristas e, em softscars, a névoa de influências passadas, acumulada por elementos do rock, eleva sua persona para outro patamar artístico e qualitativo. 

O que brilha com força é o relance nostálgico para o rock alternativo da década de 1990 e o punk dos anos 2000, combinando a sonoridade já trilhada em outros momentos da discografia, os espaços que Serotonin II e Glitch Princess aparecem nessa estrutura são animadores. Assim, cria-se um som característico capaz de romper qualquer linha do horizonte de expectativa e que atesta o nome de yeule como potência transformadora da música. Sua arte emana atenção. Toda a narrativa que relembra a juventude, trilha o presente e evoca o futuro, vem para expor as cicatrizes. Não somente no sentido figurado, como vulnerabilidade. Elas são tratadas no real também. São marcas no corpo que podem funcionar como ponteiro geográfico. São localizadores que conduzem memórias, acenam para momentos e situações adversas fazendo sentir e reviver dores e amargores de uma ferida que está sendo escondida. O humano aglutina lembranças do contemporâneo acelerado que corrói a mente. E é exatamente sobre esse lugar, o corpo físico e suas fissuras dolorosas, como cicatrizes de automutilação, que o álbum se apoia. Para isso, nada melhor que a faixa-título que carrega o peso do material em suas linhas: “All this love I have for you has madе, softscars / All this love has cut me like a blade, softscars”. Uma fatia de músculo mutilada que expele informação genética. Nada mais humano que isso, não?

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Glitch Princess tem tudo para se tornar um clássico dos adoradores da estranheza e do experimentalismo em sua fórmula mais intrínseca e verdadeira o possível.
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