SOUNDX

Wallsocket

• Mom + Pop

• 2023

8.5

Com sabedoria, underscores faz de Wallsocket um exercício inventivo que combina uma variedade de gêneros díspares para formar sua sonoridade autêntica.

Wallsocket

• Mom + Pop

• 2023

8.5

Com sabedoria, underscores faz de Wallsocket um exercício inventivo que combina uma variedade de gêneros díspares para formar sua sonoridade autêntica.

PUBLICADO EM: 02/10/2023

PUBLICADO EM: 02/10/2023

Nas últimas décadas, como reflexo de um tempo presente acelerado, a relação com a musicalidade também não escapa de uma esteira em reprodução descompensada. Plataformas de streaming, a condução de uma indústria fonográfica que dita as regras e a produção e o ato de escutar música foram transformados. Isso torna, por outro lado, o produzir mais acessível: se envolver musicalmente não se restringe mais a grandes estúdios de gravação como nos períodos atrás. No entanto, deve-se dizer que, artistas jovens não são uma exclusividade desse momento histórico. Michael Jackson, por exemplo, experimentou a fama logo criança, mas soa mais como uma exceção em meio a regra. Atualmente, é possível ver jovens com ânsia para conquistar um espaço à sua maneira, do modo mais simplório e sem precisar de muito, basta um computador e criatividade. Claro que isso demanda simplificação, mas não precisa ir muito longe e ver plataformas como Soundcloud repleta de novos talentos exercendo seu domínio sobre a arte. O projeto de April Harper Grey, o underscores, surgiu nesse meandro em que a liberdade musical é expressão máxima do desígnio juvenil. 

A artista fez sua estreia na rede em 2015, quando tinha apenas 15 anos, com a faixa eletrônica “Mild Season”. Por lá ela ficou produzindo seus materiais muito apoiados em influências desse gênero, creditando principalmente Skrillex. Desenvolvendo a sonoridade, Grey explorou suas possibilidades quando caminha para outros cenários, se fixando no glitch, no future bass e na miscelânea art pop com o EP Skin Purifying Treatment. Em 2019, com o lançamento de We Never Got Strawberry Cake, é possível ver o som ganhar contornos do hyperpop, que mais tarde se maturaram no primeiro álbum de estúdio lançado de forma independente, fishmonger, de 2021. Desde seu engatinhar, parece que a tendência é buscar inúmeras referências externas e mixar num som próprio, abocanhando também elementos do punk e do emo — e é aqui, na gigantesca rede de gêneros que apoiam a estruturação de novas tendências musicais, que podemos ver resquícios do passado influenciando a música presente.

Não é como se os gêneros que constroem esse espaço ficassem adormecidos esperando uma boa alma desenterrá-los. Pelo contrário, está baseado mais nas possibilidades criativas que condensam os elementos emprestados do que num ressurgimento de um ou outro gênero apagado, já tem artista demais tentando fazer uma revisitação punk, por exemplo. Nesse cenário, o hyperpop, pelo menos em sua corrente atual, trilhada por nomes como 100 gecs, Dorian Electra e Alice Longyu Gao, tem se sustentado por empregar caracteres de metal, industrial e punk. Mais agressivo que seu surgimento fofo e borbulhante de SOPHIE e Hannah Diamond, o gênero se remodelou rapidamente, sendo possível ver jovens aos montes tentando agarrar uma parcela desse espaço, ativando, inclusive, elementos do rap, como faz brakence. Embora underscores tenha caminhado brevemente por esse cenário, Wallsocket está em outra direção, combinando, também, gêneros diversos com a mesma desenvoltura que nomes da corrente hipereletrônica.

Refrescante e divertido, o segundo disco de underscores se sustenta por uma confluência de sonoridades que combina punk, eletrônico e até mesmo folk, possibilitando remodelar a música e se estabelecer com algo singular no pop. Ao romper as barreiras dos gêneros, abre-se espaço para a inovação e Wallsocket é reflexo desse exercício. Parece que, quando não há um grande selo por trás de sua arte, a liberdade para improvisar é muito bem-vinda. Por que não combinar gêneros tão distintos? Quando rompe essa limitação, colocada especialmente por medo ou por uma questão de lucro da comerciabilidade pop, um campo animador é possível. Assim, a abertura contagiante de “Cops and robbers” já atesta a criatividade investida. Sendo devidamente nostálgica ao abraçar o convencional pop punk e sua melodia cativante, o espaço é desconstruído com uma pitada de noise que maximiza os elementos em um som estridente e agudo.

Junto desta, o trio inicial acompanha também “Locals (Girls like us)”, uma entrega pop-eletrônica empolgante, remete ao cenário dance da década de 2010, e em especial, uma interpretação vocal que relembra Kesha. A seguinte, “Duhhhhhhhhhhhhhhhhh”, apela para a repetição irritante do trecho “Duh, duh, duh, duh, duh”, que é empregado ao fundo com exaustão na primeira parte, mas o recurso vai se dissipando na produção ao passo que a percussão cresce, chegando na ponte com uma explosão de guitarra. Assim, em linhas gerais, o som do material é bem característico. Não demora para perceber que existe uma constante, quando não trabalha com faixas bem explosivas, apela para a calmaria inicial que desemboca na ponte com uma sinfonia alucinante do que underscores pode oferecer. Recorrente, também, é a utilização de introduções faladas que se comportam como base da canção, como “You don’t even know who I am”. Mesmo manjado, esperar a próxima música é sempre contagiante. 

Uma das primeiras artes de divulgação do material foi publicada em abril deste ano contando um pouco da narrativa do disco. Grey escreve que passou o último ano distante das redes porque estava em uma cidade muito pequena do estado do Michigan, chamada Wallsocket. Estar nesse lugar, inspirou construir um novo álbum, este que adota a perspectiva dos moradores locais, tentando imaginar o que eles pensam e sentem. O que a imagem não conta é que tudo não passa de ficção, não existe nenhuma cidade com esse nome, sendo uma criação da artista para sustentar os personagens e suas narrativas. A história inicia com um assalto a um banco, mas que acompanha principalmente três jovens meninas numa jornada sinuosa, enfrentando situações como uma doença rara — “Duhhhhhhhhhhhhhhhhh” — e um caso de abuso sexual, visto na faixa “Johnny Johnny Johnny”. Aqui está outro ponto forte do disco, suas composições. Ele transita por uma série de temáticas que refletem o modo de vida e o comportamento estadunidense, generalizando, podemos situar no ocidental do globo também. A música que mescla bastante disso é “Geez louise”, executando um apanhado histórico que reflete processos de colonização e o impacto geracional de uma moral cristã. 

As melodias de Wallsocket são outro recurso fascinante. A forma pela qual elas ressoam instantaneamente torna a escuta proveitosa ao se revestirem da facilidade atrativa do pop, mas progredindo para improvisações de novos espaços com criatividade, como se fossem adições secretas — o single “Old money bitch”, que se recobre do caloroso hyperpop, sintetiza bastante essa ideia. Mais dessa inventividade é conferida em “Shoot to kill, kill your darlings”, que inicia amparada no glitch até a convencional percussão caótica aparecer, em sequência, amaciada pelo banjo que preenche o espaço até ela voltar distorcida, lançando para uma das faixas mais misteriosas, “Horror movie soundtrack”. Outro momento transformativo é a canção mais longa do material, “Geez louise”. Iniciando agressiva com bastante atitude punk, ela descompassa para um lugar tranquilo, soando como algo country-folk que gradativamente se avoluma até terminar atrevida do mesmo jeito que iniciou. Com peças complexas como essas, devidamente repletas de adições inteligentes, é inegável que a versatilidade acompanha a progressão do álbum. 

Assim, com base em um produtivo exercício imaginativo, underscores se destaca exportando elementos convencionais e os maximizando. O que impede adicionar um banjo e em sequência uma potente roupagem eletrônica, como acontece em “Old money bitch”? Aparentemente nada. Não se você estiver disposto a, além de fazer um material sério e consistente, brincar com a música ao testar suas limitações. O que se encontra no projeto de Grey é visto também cintilando na dupla 100 gecs, que está disposta a qualquer coisa para trilhar um rumo que fuja do convencional, ou mesmo na vibrante teatralidade queer de Dorian Electra quando se apoia em recursos clássicos e os moderniza, como a atrevida “Puppet” que usa sample de “Für Elise” de Ludwig van Beethoven ao lado da guitarra alucinante em combinação ao eletrônico agressivo. Embora underscores se distancie, em parte, da sonoridade desses nomes, sua postura artística e a maleabilidade sonora, agarram uma posição similar nesse mesmo cenário responsável por conferir uma nova cara ao pop atual.

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