Há sempre um momento na vida de um artista em que ele sente uma irresistível vontade de querer trazer o seu público para lugares mais íntimos. É a partir da sua arte — sendo essa dança, música ou pintura — que essa catarse é feita e Have You In My Wilderness marca perfeitamente esse ponto na carreira de Julia Holter. Quarto álbum de estúdio da produtora e cantora estadunidense, a obra musical aterma tal ponto em sua história ao abrir um atalho mais rápido e fácil até o íntimo da musicista e mostrar toda a sua artisticidade, em sua forma mais bruta e pura, e revelar, portanto, um indivíduo de complexidade palatável.
Desde a entrevista dada por ela para o The Ringer (“I Don’t Have to Have a Message”: Julia Holter Speaks for Herself), em outubro de 2018, que temos um certo conhecimento de que Julia se trata de uma mulher mais introspectiva. Sigilosa ao explicar detalhes da sua vida e desenrolada em exemplificar os seus pensamentos, Holter parece ser uma pessoa mais quieta, satisfeita e segura com a vida que leva enquanto uma cantora underground. E isso transparece em Have You In My Wilderness. “Feel You”, primeiro single do álbum, exemplifica perfeitamente tudo isso ao abrir a obra como um abraço bem grande e caloroso. Ao tocar a faixa, somos automaticamente transportados para a dimensão em que se encontra a mente da cantora e podemos ouvir seus sentimentos se desdobrarem em fantásticas passagens de violinos, dóceis batidas de bateria e gentis vibrações de cordas de violão, os quais, por sua vez, são todos coordenados pela força inerente da voz da artista — que, de sua própria maneira cautelosa e calmante, traz ordem e sentido a melodia e dá cria a um verdadeiro hino de art-pop e chamber pop. Inclusive, mesmo que se tratando de trabalhos bem diferentes, a canção lembra bastante outros profissionais, como Caroline Polachek e Spellling.
Nesse mesmo registro, Holter discorre sobre a temática de Have You In My Wilderness (uma aventura pelo lugares mais íntimos da cantora) na faixa “Feel You” — primeiro single disponibilizado do projeto. Ainda nessa canção, ela canta: “Can I feel you? Are you / Mythological? / Figures pass so quickly that I realize / My eyes know very well / It’s impossible to see / Who I’m waiting for in my raincoat”. Há outras músicas que procedem utilizando dessa mesma ideia. “Silhouette”, em que Holter reconta uma famosa história que leu sobre duas irmãs que esperam ansiosamente pelo mesmo amante (“Though he is far I’ll never lose / He turned to me / Then looked away / A silhouette…”); “Sea Calls Me Home”, onde a Julia quis comunicar uma mensagem de libertação através de uma metáfora do oceano com a colocação de um refrão luminoso e estonteante (“I can’t swim, it’s lucidity, so clear…”); e “Lucette Stranded on the Island”, uma das melhores do álbum, na qual a musicista diz contar um enredo baseado num personagem secundário de uma novela chamada Chance Acquaintances (“His shadow still wet as my gash against the rock / Sharp and high on the Balearic promontory, I / See his ship go”). Inclusive, essa característica da cantora, de recontar histórias folclóricas ou representar personagens de obras que leu, é bastante presente em toda a obra; o que remete bastante a composições de outros grandes nomes na indústria, como Lana Del Rey. E, falando dessa forma, pode até dar a entender uma falta de compromisso da artista em revelar mais sobre si mesma, porém isso seria uma interpretação errônea. Ela usa desses artifícios justamente para comunicar seus sentimentos mais profundos.
Aliás, é muito instigante observar como as letras dos artistas são escritas; como cada um, independente se o faz de maneira a qual soem boas ou ruins, se expressa, musicalmente falando, por meio delas. A emoção que Holter e demais outros compositores do ramo deixam passar pelos versos é muito cativante, por mais extremamente enigmático e misterioso. Mesmo que o detalhismo, a exemplificação extremamente exata, dos acontecimentos do dia a dia na letra seja um artifício já há muito tempo utilizado na composição lírica, só veio a se popularizar novamente nas mãos de cantoras como Phoebe Bridgers, Lana Del Rey, Taylor Swift e demais outros nomes. E, sinceramente, tal retomada aos velhos costumes de imprimir sentimentalismo nas canções com números cada vez mais altos de detalhes me deixa extasiado. Assim como em Have You In My Wilderness, este admirável feito nos projetos os dão um toque especial muito satisfatório de completude e profundidade. Não é como se projetos mais simples nesse aspecto não detivessem equiparável valor artístico taxado neles. Longe disso, muitas obras artísticas, distantes de tudo isso, também conseguem soar fascinantes. Porém, nos últimos tempos, ficou notório a crescente implacável de álbuns lançados adeptos do movimento. Daqui a pouco tempo, estaremos repletos de projetos assim. Então, há de todos se conformaram (alegremente, imagino) com nossa futura realidade.
Um detalhe bastante importante é que ouvindo as adjacentes faixas seguidas de “Feel You”, “Silhouette” e “Lucette Stranded on the Island”, algumas das primeiras listadas na tracklist, é a contrariedade observada quando obtida a experiência de ouvir suas obras passadas, como Loud City Song; por conta da forma diferente como resolveu escrever esse álbum em específico. Nessa mesma entrevista para o jornal The Ringer, Julia revelou ter feito uso de um estilo de escrita mais conhecido e tradicional, o típico “verso-refrão-verso”. Provavelmente para facilitar a compreensão dos ouvintes que escutem o álbum, justamente por seu tema central se tratar de uma obra a qual retratasse quem era e o que representava — não faria muito sentido se esforçar tanto para parecer mais exposta se os outros não consigam compreender a situação na qual a cantora se colocou. Ela já havia feito isso anteriormente, porém, dessa vez, decidiu por fazer disso um aspecto mais predominante e característico. Portanto, pudemos finalmente observar mais o lado lírico da cantora de maneira mais clara e obtivemos algumas das composições mais ricas e únicas da década passada. As faixas com as melhores letras, e as quais elevam o nível do projeto para o mesmo de grandes clássicos do gênero, sendo “Everytime Boots” (“Oh, every time I do put on boots, I / Feel the charge as a good thing to run to / But I only hear the rattlesnake winds, they / Blow dust, and I’m helpless to fight back”), a faixa-título (“You’ll see lightning cascading / Pronouncements of our love”).
Em meio a Have You In My Wilderness, Holter consegue melhorar ainda mais a experiência de ouvir ao álbum ao integrar a obra nuances sonoras de outros gêneros no álbum, como indie rock, baroque pop, dream pop e até mesmo um pouco de jazz. Mesmo que em pouquíssimas dosagens, se prestado bastante atenção, se consegue perceber a existência desses elementos nas canções. A maior prova disso é a “Vasquez”, penúltima faixa do disco, que consta um instrumental de uma riqueza imensurável. Tal qualidade do projeto é algo provindo da irresistível vontade da cantora de sempre querer adicionar mais detalhes aos seus trabalhos e os deixá-los ainda mais alinhado com seus critérios deixá-los. E, em outro momento, é notório que, para a confecção dessa obra, Julia também buscou inspiração em seus lançamentos anteriores, como em “Night Song”.
Terminada de se ouvir a obra e levados de volta para o mundo real, não ter Have You In My Wilderness como um escape dessa realidade quando é cômodo se torna um hábito indispensável. A sonoridade transcendental do projeto consegue melhorar até os piores dos dias e trazer uma calmaria pouco sentida atualmente, visto o tumultuado que é a sociedade e toda a sua complicação. Os vocais de Julia, por mais simples e diretos que sejam, conseguem tocar o fundo da alma e conduzir o caminho das palavras que canta nas canções até o coração do público e fazer com que ressoem e se emocionem junto dela. Se esse é o que se trata toda a selvageria que resguarda o ser de Holter e toda a sua complexidade enquanto pessoa, então posso ter certeza de que ela é alguém muito interessante.