Com toda certeza, o afrofuturismo é uma das ferramentas mais brilhantes que emergiram da cultura da diáspora africana. O movimento representa muito mais do que uma estética cultural: também é uma filosofia, que traça uma confluência da negritude com a ficção científica através de artefatos artísticos e produtos culturais. Obras com marcadores sociopolíticos solidificados na relação entre passado, presente e futuro do povo preto, a premissa parte do princípio da herança escravagista e do terror racial que compartilhamos e vivemos, e de que, para criticar a realidade e construir alternativas, é preciso imaginar um lugar no espaço-tempo onde esse futuro já existe. O crítico cultural Mark Dery cunhou o termo no ensaio “Black To The Future”, de 1994, em que ele entrevista Samuel Delany, Greg Tate e Tricia Rose sobre a falta de autoria negra em obras sci fi. A conceituação permanece elástica e com aspectos que não possuem consenso, mas o trabalho de discussão de diversos acadêmicos a artistas garantiu solidez na sua definição e principais características.
No próprio ensaio, Dery articula suas ideias sobre o que seria o afrofuturismo com a expressividade negra das obras de ficção científica do século XX. Isso significa que, antes de ser nomeado, o movimento já seguia em curso e possuía décadas de produção e desenvolvimento. Vários desses trabalhos estão na literatura, outros no cinema, na música, na moda e assim por diante. Alguns exemplos clássicos são o romance “Invisible Man”, de Ralph Ellison, os personagens Pantera Negra e Hardware e suas histórias em quadrinhos, publicadas respectivamente pela Marvel Comics e DC Comics, as pinturas de Jean-Michel Basquiat e a expressividade artística de Grace Jones, que causou fervor na Europa e se tornou um ícone inestimável da moda. Quando se trata de música, o jazzista e filósofo Sun Ra é o principal propulsor, com peças musicais que continham relativizações temporais e sua filosofia cósmica, através da aproximação das culturas africanas antigas e da vanguarda da era espacial. Na década de 1980, veio o techno, música eletrônica criada por DJs e produtores negros de Detroit, que também surgia como resposta ao embranquecimento e marginalização da música disco. Logo depois, diversos nomes pretos do mainstream passaram a incorporar os elementos da corrente, atribuindo o visual chocante e fora das convenções sociais, além de uma musicalidade vanguardista que mirava no futuro. Um dos casos mais emblemáticos é, com toda certeza, o trabalho solo de Missy Elliott: no videoclipe e nas apresentações de “The Rain (Supa Dupa Fly)”, a rapper usa o já icônico macacão preto inflável, com os óculos de sol cheios de strass. Porém, nos anos recentes, houve uma reconfiguração singular do movimento, sendo chamado de Neo-Afrofuturism por alguns autores. E, obviamente, Janelle Monáe tem tudo a ver com isso.
Crescendo em Quindaro, uma comunidade de trabalhadores de Kansas City que se tornou um refúgio histórico para pessoas afro-americanas, a artista já começou a formar suas visões de mundo pela realidade que estava cercada e que, futuramente, guiaria a sua veia artística. Em 2003, Janelle iniciava sua carreira musical ao lançar um álbum de demos de forma independente chamado “The Audition”. Porém, três anos mais tarde, ela chamaria a atenção de Big Boi e assinaria com a Bad Boy Records, onde ela de fato começaria a dar a vazão ideal para a sua expressividade. No mesmo ano, participou de duas faixas da trilha sonora de Idlewild, de Outkast, e seu EP de estreia, Metropolis: The Chase Suite, chegava ao mercado em agosto de 2007.
Nos primeiros meses de 2010, Janelle Monáe lançava seu primeiro álbum de estúdio, intitulado The ArchAndroid. Com dezoito faixas e mais de uma hora de duração, poucos imaginavam que esse seria o projeto responsável por formatar e direcionar todas as mudanças estruturais do afrofuturismo dali em diante. É um disco opulento por natureza, que propõe uma transfusão criativa de diversas sonoridades e temáticas. Ele representa a segunda e terceira parte da série conceitual “Metropolis”: aqui, nós acompanhamos os fragmentos mais ferozes e fundamentais da história de Cindi Mayweather, uma androide de 2719 residente da cidade de Metropolis. Os androides são produzidos de maneira massificada a partir de seres humanos — nesse caso, ela é a Jane 57821, uma cópia da própria Janelle Monáe.
Com inspiração direta em clássicos como “Alice no País das Maravilhas” e “Metropolis”, filme de Fritz Lang de 1927, The ArchAndroid dilui todas as fronteiras artísticas possíveis. Irresistivelmente pretensioso, o álbum aposta na flexão orgânica de diversos gêneros da música preta, como o R&B, psychodelic soul, art pop e funk, que se integram através de instrumentações sofisticadas e harmonias dinamizadas. O resultado é uma experiência sonora enriquecida pela linguagem cinematográfica, que finca a mistura implacável da voz cantada com versos de rap de Monáe. O lirismo é construído pela não-linearidade da narrativa proposta, que se expressa por metáforas, alegorias e muita teatralidade. Existem três arranjos da história desse universo se desenvolvendo simultaneamente, causando um efeito psicológico de quebra-cabeças no ouvinte, que tenta encaixar as peças e entender os conflitos estabelecidos.
O arquétipo de androide é, na verdade, o comentário social de Monáe sobre como é ser uma pessoa marginalizada nas sociedades contemporâneas. O enfoque é para as vivências queers negras, que são pessoas socialmente posicionadas em limbos e estão à margem até mesmo das comunidades minoritárias que fazem parte. Infelizmente, é totalmente verossímil com a realidade narrativa (e do mundo real) que Metropolis viva num sistema rígido de estratificação social, em que a classe oprimida está se articulando arduamente para mudar essa situação. Em paralelo, também acompanhamos o romance de Cindi com o humano Sir Anthony Greendown, um amor proibido, perigoso e latente.
Para começar essa verdadeira história digna de cinema, a The Wondaland ArchOrchestra pincela o tom através de duas overtures, que também nos ambientam em um teatro de ópera e aumenta a nossa ansiedade para o espetáculo começar. Acompanhando o ritmo de uma orquestra bem arranjada, todas as faixas são interligadas por transições sonoras (em sua maioria non-stop), que propiciam uma imersão inabalável. O nível de fluidez já é perceptível pela sequência “Dance or Die”, “Faster” e “Locked Inside”, que se cadenciam com tanta harmonia que parecem integradas entre si. Esse efeito se repete nas transições de “Cold War” e “Tightrope” e, mais para o fim, de “Make The Bus” e “Wondaland”.
O álbum brinca com o contraste de texturas sonoras e os estados emocionais do eu-lírico. “Dance or Die”, por exemplo, te joga despreparado para um abismo de versos ágeis e detalhistas, declamados no meio de uma corrente de dança, resultando numa música que é, ao mesmo tempo, áspera, letárgica e contagiante — e é melhor você dançar! No entanto, “Sir Greendown” é concebida pelo sopro congelante da madrugada. Derretida pelo amor poético de Cindi ao chamar seu amado, ela parece esmaecer dentro de si, enquanto flutua no meio de camadas sonoras etéreas e vocalizações suaves como nuvens. Porém, apesar de ser um registro irretocável, ele possui um magnum opus cintilante: a faixa final. “BaBopByeYa” é uma canção épica orquestrada, dividida em três partes em torno de quase nove minutos. Definida por Chuck Lightning como a “Moby Dick” do álbum, cada momento determina um aspecto diferente do mesmo tema: a fuga simbólica de Cindi e Anthony. É uma ruptura definitiva, em que ambos deixam aquela realidade dilacerante sem olhar para trás. Nos três minutos, há muita tensão e mistério pairando no ar. Então, ela cresce, se contrai, provoca o clímax… e encerra, gloriosa e encantadora, convicta de que dias melhores virão.
The ArchAndroid permanece como o projeto de vida de Janelle Monáe, que fundamentou todas as suas nuances criativas e sua própria identidade. As histórias de Cindi não estão mais em evidência nos projetos atuais de Monáe, mas elas cumpriram o seu papel com maestria. Partindo das obras clássicas do afrofuturismo e das narrativas fantásticas, o álbum modelou o modus operandi atual do movimento, que passou a ser mais diverso, multifacetado e, por consequência, ampliou a sua presença no aparato cultural e artístico das diásporas negras.
E o afrofuturismo permanece florescendo. Com os impactos de longo prazo da pandemia de Covid-19, a produção cultural da década de 2020 insiste no caráter escapista para tendências que revisitam o passado. Seja o pop rock, a era disco ou a revitalização da estética Y2K, a nostalgia retroativa é uma constante forte. Esse cenário poderia ser um impeditivo, mas o movimento não se retraiu e continua produzindo de maneira invicta — como, por exemplo, o filme “Black Is King”, de Beyoncé, o videoclipe de “Kiss Me More”, de Doja Cat e SZA, o jogo de RPG “Mojubá” e o álbum “Nebulosa Baby”, de Giovani Cidreira. É catártico notar como muitas das características atuais que permeiam esses trabalhos nasceram de um projeto em comum. Existe um marco definidor que separa o Afrofuturismo do Neo-Afrofuturismo, e ele se chama Janelle Monáe.
BARÓ GONZALEZ, Jana. The ArchAndroid: Cyborg Consciousness in Janelle Monáe’s Cindi Mayweather Saga. Revista Hélice, Espanha, v. 3, n. 8, p. 6-15, 2017. Disponível em: https://www.revistahelice.com/revista/Helice_8_vol_III.pdf. Acesso em: 22 set. 2023.
DERY, Mark. Black To The Future: Interviews with Samuel R. Delany, Greg Tate and Tricia Rose. In: DERY, Mark. Flame Wars: The Discourse of Cyberculture. Durham and London: Duke University Press, 1994.
MONÁE, Janelle. The ArchAndroid. Estados Unidos: Bad Boy Records: 2010. Mídia digital (68 min).
MONÁE, Janelle. The Electric Lady. Estados Unidos: Bad Boy Records: 2013. Mídia digital (67 min).
MONÁE, Janelle. Dirty Computer. Estados Unidos: Bad Boy Records: 2018. Mídia digital (48 min).
MONÁE, Janelle. The Age of Pleasure. Estados Unidos: Bad Boy Records: 2023. Mídia digital (32 min).
TIGHTROPE (feat. Big Boi). Direção: Wendy Morgan. Estados Unidos: Bad Boy Records: 2010. Mídia digital (5 min). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=pwnefUaKCbc. Acesso em: 22 set. 2023.
UNION COLLEGE. Digital Collections @ Union. Janelle Monáe as Cindi Mayweather: The ArchAndroid. Nova York: Schaffer Library, 2020. Disponível em: https://digitalcollections.union.edu/s/home/item/5571. Acesso em: 22 set. 2023.
WOMANCK, Ytasha. Afrofuturism: The World of Black Sci-Fi and Fantasy Culture. 1. ed. Chicago: Lawrence Hill Books, 2013.
WORTHAM, Jenna. How Janelle Monáe Found Her Voice. The New York Times Magazine, Nova York, 2018. Hip-Hop at 50, p. 28. Disponível em: https://www.nytimes.com/2018/04/19/magazine/how-janelle-monae-found-her-voice.html. Acesso em: 22 set. 2023.
YASZEK, Lisa. Afrofuturism, Science Fiction, and the History of the Future. In: NURUDDIN, Yusuf; ROGAN, Alcena M.D.; WALLIS, Victor. Socialism and Social Critique in Science Fiction. [S. l.]: Routledge, 2006. Disponível em: https://sdonline.org/issue/42/afrofuturism-science-fiction-and-history-future. Acesso em: 22 set. 2023.