Desde os primórdios da humanidade, a água teve sua imagem apreciada. Por se tratar de um recurso de valor imprescindível para a vida, a ausência ocasionaria a morte, e sua presença a vida. As antigas civilizações a estimaram como um grande tesouro, em vários rituais religiosos. No cristianismo, por exemplo, este bem é utilizado em processos de purificação e, até mesmo, no batismo, pois é visto como um símbolo de renascimento. Já no hinduísmo, o elemento é reconhecido como algo sagrado — inclusive, o Rio Ganges é considerado um “paraíso” onde as pessoas vão para se banhar ou espalhar as cinzas de seus entes queridos. Na atualidade, o significado dessa palavra se desdobra em diversas variáveis, baseada em muitas interpretações diferentes. Entretanto, Water Made Us, novo álbum da cantora e poeta Jamila Woods, se destaca em meio a multidão com a magnífica viagem que ela proporciona ao ouvinte que se permite imergir por inteiro, e também por sua visão adorável sobre relacionamentos.
Jamila Woods diz ter se inspirado na interpretação da água dada pela escritora Toni Morrison para confeccionar Water Made Us. Morrison nesse sentido, diz que o elemento possui uma “memória perfeita” e como “todo escritor agiria da mesma forma que a água”. Ainda explica que “eles tentaram direcionar a corrente do Rio de Mississippi para outro curso, para terem espaço para construírem novos edifícios, mas a água acabou causando inundações, pois ainda se lembrava qual era a sua verdadeira afluente. Escritores também fazem isso, porque também tentam voltar para a sua jornada em busca de sua verdade.” — tal afirmação está de acordo com as ideias desenvolvidas no trabalho de Jamila, pois, no novo disco da cantora, ela inicia uma viagem até o próprio íntimo, para a manutenção de todos os danos causados pelos conflitos gerados pelos seus relacionamentos passados. Cientificamente falando, somos quase inteiramente constituídos pelo elemento, e segundo a artista, isso faz com que compartilhemos dessa mesma natureza. Ou seja, também possuímos a capacidade de voltar em busca de plenitude e amadurecimento emocional.
Sonoramente, Water Made Us não se destaca pela criação de uma paleta sonora muito mirabolante, mas pelos bons resultados obtidos a partir do seguimento de direcionamentos sonoros já muito conhecidos. O álbum se trata de um trabalho de R&B contemporâneo bastante simples, porém, efetivo. Além disso, dispõe de melodias calmantes e vocais luxuosos. De certa forma, lembra as obras características do gênero, como A Seat At The Tablet da Solange, só que mais terapêutico e filosófico. Para quem adentrou o universo deslumbrante do projeto em busca de algo ousado ou diferente, pode acabar se decepcionando ao perceber soar dessemelhante. Não era isso o que Jamila havia planejado para o álbum, a intenção aqui foi criar um trabalho pessoal e introspectivo, mais focado no que ela queria dizer sobre amor e autoconhecimento em suas canções. Em “Bugs”, primeira faixa do disco, ela canta sobre não saber o que sentir e fazer em relação aos agrados que o seu parceiro a faz no dia a dia, por não estar acostumada a ser tratada com gentileza e tanto apreço; pedindo para que seu pretendente seja paciente e indo atrás de recompensá-lo pela espera. Na música subsequente, “Tiny Gardens”, primeiro single da era, Woods fala sobre a importante tarefa diária de trabalhar em nós mesmos e em nossas relações com as pessoas. No pré-refrão, ela diz: “It’s not gonna be a big production / It’s not butterflies or fireworks / Said it’s gonna be a tiny garden / But I’ll feed it everyday”.
Por mais que o álbum seja muito bem equilibrado em termos de qualidade, sem nenhuma faixa destoando das outras em virtude da inferioridade ou superioridade, acredito que as melhores músicas do disco estejam na primeira parte de Water Made Us. Destaco especialmente as incríveis “Practice”, em parceria com a cantora Saba, “Send A Dove” e, principalmente, “Thermostat”, com o rapper Peter CottonTale. Nestas faixas, as poesias auspiciosas de Jamila Woods encontram forças mais do que suficientes para reluzir com intensidade, alcançando os corações dos ouvintes e os iluminando com aprendizados indispensáveis. Na primeira canção, ela faz uma referência a um evento emblemático envolvendo o jogador Allen Iverson, que demonstrou indignação ao ter o seu comprometimento com o esporte questionado após faltar a alguns treinos: “We talkin’ about practice. Not a game.”. Woods, com isso, faz uma analogia aos relacionamentos, destacando a necessidade de paciência com seu parceiro para desmistificar as coisas com propriedade antes de avançar, dizendo: “We were just rehearsin’ babe, you know this ain’t the game”. A faixa apresenta uma uma produção vibrante, que combina singelas notas de sintetizadores com uma batida cativante de neo-soul e funk.
Em “Send A Dove”, Jamila e seus colaboradores dão forma a uma produção bastante interessante de R&B contemporâneo, que quebra as batidas típicas do gênero, mesclando-as a elementos sonoros dóceis ao fundo e criando uma melodia encantadora. A voz da cantora também é submetida a um efeito sonoro instigante e termina com um coral majestoso, remetendo fortemente ao gospel. Já em “Thermostat”, parceria de Woods com o rapper Peter CottonTale, o ouvinte é cativado com uma balada encantadora de soul, evocando fortemente os lançamentos dos anos 70. A instrumentação da música é muito bonita e surpreendente, partindo de arranjos típicos de guitarra e passagens de piano até um solo radical de guitarra eletrônica no pós-refrão, que complementa perfeitamente a faixa. Continuando, temos a encantadora “Wolfsheep”, “I Miss All My Exes”, um interlúdio em que Jamila presta homenagem a todos os seus ex e os agradece pela experiência que obteve a partir da convivência com eles, e “Boomerang”, último grande destaque de Water Made Us — esta é uma música frenética de synthwave com um refrão muito cativante.
No geral, Water Made Us se prova ser um ótimo lançamento, embora raramente consiga surpreender o ouvinte. Como eu disse anteriormente, aqueles que esperavam uma reinvenção do R&B moderno ou alguma outra mirabolância, vão se decepcionar bastante. Porém, eu diria que se deixar desanimar por conta disso exclusivamente seria um erro, pois o álbum é uma apresentação da visão deslumbrante de Jamila Woods sobre o amor. Após percorrer uma árdua e longa jornada por autoconhecimento, que ainda não chegou ao fim, Woods nos mostra as suas concepções e ideias num registro extremamente pessoal e vulnerável. E é por isso que a obra deveria ser julgada principalmente pela sua vulnerabilidade — mais especificamente as suas composições, nas quais, de forma acessível, Jamila poetisa lindamente sobre tudo isso. Pessoalmente, o único deslize que ela cometeu é a inclusão do mantra um tanto envergonhante “libra intuition”. No entanto, dado ao seu curto tempo de duração, não ocasiona nenhum dano.