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Preacher's Daughter

2022 •

DAUGHTERS OF CAIN

9.2
Em seu disco de estreia, a cantora norte-americana Ethel Cain entrega uma narrativa catártica, folclórica, refinada e altamente comovente.
Ethel Cain - Preacher's Daughter

Preacher's Daughter

2022 •

DAUGHTERS OF CAIN

9.2
Em seu disco de estreia, a cantora norte-americana Ethel Cain entrega uma narrativa catártica, folclórica, refinada e altamente comovente.
17/05/2022
 

Por definição, folclore é um conjunto de elementos culturais de um determinado grupo ou sociedade. Isso inclui nele contos, lendas, costumes, danças, rituais e outras tradições que se concretizaram no passado, mas que se perpetuam até os dias de hoje. Grande parte desses são mantidos vivos pela oralidade, de geração para geração, muitas vezes em rodas de histórias realizadas pelos mais velhos. Como lembra Roger Abrahams, uma parcela considerável dos países do Novo Mundo tem seu folclore direcionado por meio das culturas europeias trazidas para esse hemisfério através dos colonizadores. Diversos de nossos costumes são releituras ou reformulações dos hábitos do Mundo Velho. Dentro de todo esse conglomerado, o que mais se destaca, talvez, sejam as histórias, muitas delas mágicas e místicas, resultando em uma moral.

O disco de estreia de Ethel Cain, Preacher’s Daughter, pode não ter trezentos anos ou ter sido trazido da Europa, mas carrega fortemente um caráter folclórico em sua substância intrínseca essencial. Ele segue os dois EPs e três mixtapes lançados anteriormente por Hayden Silas Anhedönia — nome de nascimento de Ethal Cain. Seu primeiro álbum de estúdio, entretanto, chega mais forte, com composições que cortam como vidro e uma sonoridade que ultrapassa as bordas tradicionais de pop/rock alternativo. Segundo a cantora, essa é a primeira parte de uma série que contará a história de três gerações de mulheres, começando com a filha: “É praticamente apenas um conto clássico americano. Um tema comum sobre o que gosto de escrever é o trauma intergeracional. Coisas que foram passadas através de gerações e como as ações de seus pais ou avós podem afetá-lo”, ela disse ao Alternative Press. O trabalho se apoia quase que totalmente em sintetizadores atmosféricos e empoeirados, que ressoam os mínimos detalhes das confissões de Hayden em escalas maiores, fazendo tudo soar mais que a própria vida. É um registro catártico, intimista, exuberante, estranhamente mágico e assustadoramente apaixonante. 

O lado mais forte de Preacher’s Daughter é sua narrativa. Para essa obra, Ethel edificou uma diegese autônoma que, embora tenha suas similitudes com nosso mundo, parece trágica demais para dialogar com uma realidade tão monótona. Se passando em uma pequena cidade típica norte-americana, Ethel dá seus primeiros passos de uma juventude turbulenta: seus conflitos paternos, religião, amor fadado ao fracasso, abuso sexual, drogas e assassinato dirigem uma história imagética deturpada e distorcida. Em todos os momentos, imagens se formam em tons sépias durante o inverno ou outono, e raramente parece haver um conforto caloroso em meio a tanta desilusão. “Este primeiro registro é sobre uma garota que está lidando com coisas de seu passado, as quais sua família a levou a se envolver, e ela está tentando encontrar um lugar no mundo para quebrar com isso”, Hayden disse. No caso, a garota da estória passa por abusos na infância por parte de seu pai, resultando em uma adolescência problemática e vida adulta miserável e fatal. É uma das poucas histórias sobre juventude e amadurecimento que te aprisionam ao invés de libertar. 

O enredo, no entanto, só é possível pela excelente composição de Ethel. Esse é o aspecto mais folclórico de todo o registro, visto que todas as letras carregam um imenso poder visual. As faixas presentes aqui contam com linhas que são longas e versos detalhistas, mas que se encaixam com perfeição, entregando tanto fidelidade narrativa realista, quanto metafórica. “American Teenager”, por exemplo, transcreve uma adolescência tradicional estadunidense, mas sua caneta pende para lados nocentes: “I do what I want, crying in the blеachers / And I said it was fun / I don’t need anything from anyone, it’s just not my year / But I’m all good out here”. “Western Nights”, por sua vez, pinta a cantora à mercê de um amante violento: “Trouble’s always gonna find you baby / But so will I /Crying only because I’m happy”. Todavia, o ponto mais forte do disco se torna “Hard Times”, instante no qual a artista discorre sobre os abusos em sua infância. Ela canta:

In the corner

On my birthday

You watched me

Dancing right there in the grass

I was too young

To notice

That some typеs of love could be bad

Praying I’d be likе you

Doing all of the things that you do

And I still do

And that scares me

Embora Preacher’s Daughter estenda-se por 75 minutos de duração, raramente você sente o peso desse tempo. Grande parte disso deve-se por causa justamente da composição precisa e canalizadora de Ethel. O tempo médio das canções é de quase seis minutos, no entanto, nenhuma delas parece percorrer tanto. Em “Thoroughfare”, orientada pelo country, ela narra a quebra de sua vida familiar, conhece Isaiah e foge para a Califórnia. Por mais que essa canção seja longa, quase 10 minutos, Cain tem o poder de manter tudo interessante. “You fell in love with America when you were 12 years old / And by 17 you knew you had to see it all”, ela começa, como um prólogo de um filme. Um pouco antes, a emotiva “A House in Nebraska”, sustentada quase inteiramente pelos vocais sombrios e ecoantes de Hayden e por um piano de cauda macabro, relembra os momentos com um ex-namorado. Apesar do passo lento, a forma pela qual a cantora conta sua história é tão interessante e divergente do comum que uma curiosidade emerge dentro do ouvinte, enquanto seu coração se parte. 

Para além disso, toda instrumentação de Preacher’s Daughter é singular. Sua inspiração no pop/rock alternativo é apenas uma influência dentro de sua sonoridade original. Ela pegou os melhores elementos desses gêneros e traçou uma marca mais além, elevando seu próprio nível. “Family Tree” trabalha puxões de baixo e guitarra e sinos de igreja enquanto adota elementos do rock/country de Springsteen e drifts sonhadores de Pink Floyd. “Ptolemaea” parece elaborar em cima de tons dos primeiros trabalhos de FKA twigs, para, no final, explodir em guitarras de metal dos anos 1980. As duas peças totalmente instrumentais do disco, “August Underground” e “Televangelism”, por fim, atribuem um significado importante na narrativa: enquanto a primeira demonstra a personagem sendo assassinada e canibalizada por ser Isaiah, a segunda é sua transcendência para o paraíso. 

Nos momentos finais, uma figura emerge com potência: sua mãe. Embora, em outras faixas, ela apareça como memórias ou raramente seja lembrada, ela é o abraço final. Em “Strangers”, canção de encerramento, Ethel manda uma carta para sua mãe. Nesse momento, ela já assimilou a morte e está bem. “When my mother sees me on the side / Of a milk carton in Winn-Dixie’s dairy aisle / She’ll cry and wait up for me”, ela começa, e termina: “Mama, just know that I love you / And I’ll see you when you get here”. Nos toques de violão, ela finaliza a história que parece ter sido passada a gerações.

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