Nas últimas semanas, uma série de polêmicas precederam o lançamento de Hit Parade, sexto álbum de Róisín Murphy. Em uma conta pessoal do Facebook, a cantora irlandesa expressou preocupação acerca do uso de bloqueadores hormonais por jovens transgêneros, afirmando que eles são apenas “crianças confusas” e associando a venda de tais medicamentos aos interesses lucrativos da dita Big Pharma. Esse posicionamento veio como um choque para os fãs e foi seguido de um pedido de desculpas que mais soava como uma justificativa do que uma explicação. Começaram a surgir, então, rumores sobre uma suposta doação dos lucros do novo trabalho para organizações pró-trans por parte da gravadora, mas os mesmos foram desmentidos por Róisín. Mas o mais chocante dessa história, além do timing bizarro, é a surpresa de, ao ouvir o disco, se deparar com uma narrativa que incentiva a livre expressão do amor, o desfrute da euforia e, principalmente, a autodescoberta — em suma, revela-se uma enorme incongruência entre os discursos que a artista deseja difundir, colocando suas intenções em questionamento.
Ultimamente, muito se fala sobre “separar a arte do artista”, tendo em vista as atitudes e falas problemáticas que muitos deles têm feito publicamente, em uma era em que as informações são espalhadas de forma rápida e, portanto, tornam-se alvo de discussão com uma facilidade inigualável. A verdade é que fazer ou não essa separação é uma escolha pessoal, mas quando os posicionamentos são recentes e estão tão frescos na memória, como no caso de Róisín e deste disco, é inevitável associá-los à obra. Ouvir Murphy cantar sobre a liberdade de viver sua forma mais autêntica em “Fader”, ou sobre ser vista como alguém para além das concepções alheias em “Eureka” — ambos temas que sim, são universais, mas que ressoam imensuravelmente com pessoas transexuais e com a comunidade queer num geral — é contraditório e lamentável à luz dos acontecimentos que envolvem este registro.
Apesar disso, por um olhar menos subjetivo, não há dúvidas da engenhosidade criativa por trás de Hit Parade, e muito se deve, também, ao brilhante trabalho de produção feito por DJ Koze, afinal o projeto se trata de um esforço coletivo. O produtor alemão explora as nuances e possibilidades da música eletrônica de modo a encontrar, em meio às batidas sintéticas, um pulso de vivacidade e alma. Juntamente à narrativa construída por Murphy, a pluralidade sonora ofertada por Koze, que une elementos do house aos grooves irresistíveis do soul, cria uma estética altamente nostálgica e com um poder de conexão fortíssimo. Na descontraída “CooCool”, por exemplo, a magia veranil da chegada de um novo amor é refletida pelo lirismo apaixonado e expandida pela instrumentação funky vibrante e cromática: “A new age of love / An incandescent joy”. A texturizada “The Universe” coexiste nesse mesmo espaço, mas as sensações aqui são ainda mais profundas e quase ofuscantes — se a anterior simbolizava o começo de um romance, essa navega pelo íntimo da paixão sem olhar para trás. No último refrão, a voz de Róisín está tão distorcida que mal é possível compreender o que está sendo dito; ela se vê tão alucinada por esse sentimento que a única coisa que consegue se perguntar é “How could it ever be wrong?”. Entretanto, o encantamento chega ao fim com os graves súbitos de “Hurtz So Bad” — “He played me like his keytar”, a irlandesa canta sob sintetizadores dissonantes —, enquanto a agridoce “The House” põe o ponto final na relação: “This house is our swan song”.
Quando Murphy e Koze não têm suas ambições alinhadas, os resultados são menos instigantes. Tanto a faixa de abertura, quanto a de encerramento, por exemplo, sofrem para ter um propósito maior do que aquele já inerente a elas, apesar da produção bem colocada. Por outro lado, “Can’t Replicate” e “Two Ways” são peças expansivas para a narrativa proposta, mas as paletas sonoras exploradas — um house maneirista e um trap aborrecido, respectivamente — não são as mais excitantes se comparadas à genialidade dos outros momentos, como a incomparável, disco-psicodélica “Free Will”. E são eles os responsáveis por fazer de Hit Parade um registro único e o mais completo da carreira de Róisín. Ao explorar ainda mais veementemente o pop dançante já apresentado em discos como Róisín Machine e Overpowered, e uni-lo à excentricidade destemida vista no Ruby Blue, a artista irlandesa criou seu melhor trabalho. É uma pena que este lançamento tenha coincidido com um período tão crítico de sua carreira, embora essa seja uma armadilha que a própria plantou.