Dorian Electra sempre foi uma figura fascinante de se acompanhar. Desde que teve sua carreira catapultada para os holofotes com sua participação no mais vanguardista disco de Charli XCX, o POP 2, na faixa “Femmebot” — que não só incorpora a personalidade de Charli, mas que compartilha dos ideais de desconstrução e desafio à realidade característicos de Electra —, Dorian apenas triunfou vez após vez com músicas, clipes e discursos cada vez mais intrigantes. Por exemplo, em sua faixa “Man To Man”, de 2019, Dorian capta a dualidade do homem cis, heteronormativo e sequestrado pelas correntes do patriarcado, que possui na luta não somente uma postura de virilidade que há ao se enfrentar um cara “de homem para homem”, mas também uma experiência socialmente aceita de homoafetividade. Esta é provavelmente uma das únicas situações em que um homem tocar, se agarrar e se atracar com o corpo de outro não seria visto como um ato de fraqueza, feminilidade ou gay; seria, no entanto, a reafirmação da sua masculinidade através da força. Esse é o tipo de comentário social que sempre circulou as suas letras e que tornaram Electra um verdadeiro ídolo.
Todavia, o que foi apresentado desde o começo para Fanfare quebrava de vez com sua sequência perfeita de lançamentos. A era que se iniciou com “Freak Mode” já dava sinais de que estaria mais próxima de My Agenda sonoramente ao apostar nas influências do rock para construir suas bases. Não há nada de errado com isso: My Agenda foi um dos discos mais originais e marcantes de 2020, na medida em que não deixou de tecer os comentários sociais de Electra de maneira pertinente, engraçada e interessante ao seu público-alvo. O lead single de Fanfare, por sua vez, parecia querer encenar uma insanidade forçada goela a baixo. Por cima de uma produção eletrônica grandiosamente sufocante, Dorian dá vazão às suas aventuras mais “radicais”: “Catch me throwing cake at the Leonardo”, uma referência ao recente ataque à Mona Lisa, de Leonardo da Vinci, cujas pinturas são protegidas por uma camada espessa de vidro à prova de balas desde a década de 50. É, parece que a loucura de Electra se resguarda a cometer atos bobos e banais, sem efeito nenhum a qualquer pessoa. O vídeo para essa faixa tenta capturar a energia de uma rave adoidada. E tudo bem, de gênio e louco todo mundo tem um pouco; mas onde está o gênio?
É bem verdade que Fanfare não é de todo mal, diversas dessas canções são verdadeiras bangers que misturam o pop eletrônico ao rock. No entanto, é perceptível que, aqui, Dorian parece ter perdido o tato para combinar os grandes hits a letras que de fato importam. Em “Sodom & Gomorrah”, por exemplo, Electra canta, mais uma vez, sobre uma referência bíblica, desta vez a história de Sodoma e Gomorra, cidades que foram dizimadas por Deus devido aos seus pecados. Grupos modernos baseiam-se em uma exegese tendenciosa para associar esse texto e os ditos “pecados” à prática de relações homossexuais — por isso a palavra “sodomita” é utilizada como termo pejorativo para se referir aos homens homossexuais. De fato, essa é uma das canções mais cativantes do disco, mas, com faixas como essa e trechos como de “Manmade Horrors” — “Fifty Shades of Gray bigger than the Bible”, diz Electra — a impressão que fica é que Dorian parece ter esquecido quem é o seu público, e Fanfare soa como uma dedicatória unicamente aos conservadores.
Entre as melhores habilidades de Electra, está a capacidade de inverter o jogo e tornar o “valentão” o objeto da piada. Após realizar isso de forma brilhante no seu álbum anterior, quando se apropriou da cultura incel para criar seu personagem risível, que odiava mulheres, acreditava ser um gentleman, sonhava em ter a mandíbula marcada e desfilava pelos corredores dos fóruns virtuais com seu chapéu Fedora; Dorian retorna com um dos maiores destaques do álbum, “Phonies”, que soa tão despreocupadamente livre e divertida, e nada como uma tentativa falha de irritar o Vaticano. Nela, Electra faz chacota daqueles que tentam diminuir outras pessoas e se sentir especiais simplesmente pelo fato de consumirem uma arte dita cult: “Wake up, sheeple / Stream the Beatles / Stanley Kubrick / Tarantino”, Dorian enuncia os chamando de falsos. Por outro lado, Fanfare possui cantos aqui e ali que não são engraçados, mas bem vergonhosos. É notável que, desde o seu surgimento, o tal hyperpop sofreu inúmeras mudanças — as quais pudemos discutir detalhadamente em nosso artigo “#OPINIÃO: O hyperpop não é mais o que costumava ser” —: para além da sonoridade que, a cada vez mais, afasta-se do pop e aproxima-se do rock e do industrial, é certo que a temática também se alterou. Ao passo que antes era mais comum a abordagem dos efeitos da tecnologia nas relações pessoais, além de como as relações mercadológicas capitalistas condicionam a vida e a arte; hoje, nota-se o predomínio da pós-ironia, da piada e do sarcasmo. Em um dos cortes neste projeto, “Puppet” contém algumas de suas letras mais estúpidas, difíceis de se olhar: “Shove it, Miss Piggy squeal like Muppet / Fuck it, fit you like a glove, like puppet”, Dorian canta como se ainda tivesse condições de sustentar uma sagacidade inexistente. O ponto é, se tudo não passa de uma piada, e quem a faz não sabe como fazê-la, o objeto da gozação deixa de ser a música, deixa de ser engraçado e já não se sabe mais do que se está rindo.
Enfim, ao longo de 13 faixas — incluindo uma que, pela primeira vez em sua carreira, cruza a marca de 5 minutos —, o álbum mais recente de Electra não se sustenta e não tem muito ao que se agarrar e sentir saudades com o tempo. Nessa mais nova fase de sua carreira, Dorian cai em um terreno recente demais para soar nostálgico — algo que Hannah Diamond fez brilhantemente, neste ano, em Perfect Picture, remontando ao começo da PC Music — e batido demais para ser excitante. Apesar disso, das escolhas estranhas feitas neste álbum, ainda há muito o que se apreciar na música de Electra e seus colaboradores, aqui principalmente a reverenciável Cecile Believe, conhecida por dar voz às ideias de Sophie. Ainda há bops, ainda há letras instigantes… Fanfare só não foi uma boa coleção delas.