De todas as minhas intenções nesta reflexão, a de tentar explicar o fenômeno mercadológico desenvolvido por uma das maiores artistas de nosso século é definitivamente a menor de todas. Dentre tanto que podemos elencar, as habilidades vocais e a presença de palco da cantora Beyoncé são fundamentais para a consolidação de sua carreira e notórias para a repercussão de seu sucesso, mas dividem espaço com uma questão ainda maior: a reflexão de identidade racial e potencial de representação mercadológica de ser uma mulher. E uma mulher negra.
Ao lançar de surpresa na plataforma iTunes, seu autointitulado em 13 dezembro de 2013, Beyoncé realizou uma verdadeira revolução no mercado fonográfico ao desenvolver a audiovisualização de seu álbum com videoclipes de todas as faixas, tornando as possibilidades da música mainstream pop menos desafiadoras às experimentações de consumo musical na era digital, como também as perspectivas de universos transmidiáticos como base de formulação para a criação de uma narrativa original. Dessa maneira, o álbum, que conta com faixas como “Pretty Hurts” e “***Flawless”, destaca questões a respeito da jornada de uma mulher em processo de libertação de diversas amarras impostas pela sociedade patriarcal, partindo de uma discussão sobre padrões de beleza, que culmina na expressão de sua sexualidade compiladas em uma série de 17 episódios em formato de videoclipe. Se tratando de uma produção que provocou a indústria em sua proposta de expansão por duas vertentes distintas — mercadológica e identitária —, percebemos que a concepção da imagem que estava sendo construída de Beyoncé, mais estavam relacionadas a uma motivação criativa-industrial do que à expressão de Beyoncé Giselle Knowles-Carter de fato.

Desde o início da era digital, a mistificação da figura do artista teve seus limiares cada vez mais afilados ao ponto de ser quase indissociável para o fandom, ou usuários de um ciberespaço comum, a desvinculação da pessoa com o artista que ela expressa, ainda que esta não tenha motivações pessoais. Ao iniciar um processo criativo em seu autointitulado, criando nele uma persona sua, as inspirações pessoais de Beyoncé assumiram um processo de dissociação, motivados por parte da resposta mercadológica ao álbum, que não assume o caráter e potencial puramente artístico da obra em questão. Quando, em 2013, para o documentário Self-Titled, Beyoncé afirma “que quando [ela] está ligada à algo, imediatamente vê uma imagem ou uma série de imagens ligadas à um sentimento ou memórias e todas são ligadas à música”, ela descreve um processo de libertação de sua imagem como transformação plástica para uma memória de si mesma musicada, que não exatamente é verdadeira e nem sua.
Este reflexo da artista, em uma imagem enxergada literalmente pelos processos de audiovisualização, revela em BEYONCÉ o primeiro rascunho de uma persona musical vinculada à identidade étnica e de gênero da artista, que seria completada no filme Black is King, lançado no ano de 2020, e no mais recente RENAISSANCE, de 2022. Esta novidade de representação imagética como reprodutora de um espaço de significação étnico universal, coloca em jogo um processo de desenvolvimento deste “ser-produto” mercado-ideológico que passa por um processo de maturidade de reconhecimento identitário. Isto é, se a representação das mulheres negras em Beyoncé é contraditória e ainda um pouco ignorante às questões políticas e sociais de gênero — tendo polêmicas, como a referência a Mônica Lewinsky na música “Partition” —, a representação da mulher negra universal em Black is King assume toda a maturidade de uma entidade negra politicamente consciente de sua afirmação feminista e racial. O universo criado em BEYONCÉ é o primeiro passo do processo de saída da ignorância racial da jovem negra — não culpabilizada pelo lugar de não-conhecimento que o mundo a colocou —, até o estado de um corpo e mente renascidos em uma mulher negra ancestral alcançados pela homenagem de RENAISSANCE — real, mas imaterial.

Em BEYONCÉ, portanto, permite-se assumir suas inspirações íntimas a favor da criação de uma ideologia mercadológica que, pela primeira vez, cria para as mulheres negras uma representação artística em que se reconhecem e com ela amadurecem. Todo o conhecimento negado às jovens negras, impossibilitadas de enxergar à violência à mulher em suas mais diversas formas sem possuir acesso à educação feminista não-liberal e excludente, são a primeira figura de Beyoncé fora de si própria para ser mais do que é como Giselle: toda sua inocência em seu corpo e sua história, é o primeiro passo de uma mulher negra que virá a ser dona de todo o conhecimento. O que fomos no passado, não seremos nunca mais.